BIOGRAFIA
Cora Coralina ,
pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, (Cidade
de Goiás, 20 de agosto de 1889 — Goiânia, 10 de abril de
1985), é a grande poetisa do Estado de Goiás. Em 1903 já
escrevia poemas sobre seu cotidiano, tendo criado,
juntamente com duas amigas, em 1908, o jornal de poemas
femininos "A Rosa". Em 1910, seu primeiro conto, "Tragédia
na Roça", é publicado no "Anuário Histórico e Geográfico do
Estado de Goiás", já com o pseudônimo de Cora Coralina. Em
1911 conhece o advogado divorciado Cantídio Tolentino Brêtas,
com quem foge. Vai para Jaboticabal (SP), onde nascem seus
seis filhos: Paraguaçu, Enéias, Cantídio, Jacintha, Ísis e
Vicência. Seu marido a proíbe de integrar-se à Semana de
Arte Moderna, a convite de Monteiro Lobato, em 1922. Em 1928
muda-se para São Paulo (SP). Em 1934, torna-se vendedora de
livros da editora José Olimpio que, em 1965, lança seu
primeiro livro, "O Poema dos Becos de Goiás e Estórias
Mais". Em 1976, é lançado "Meu Livro de Cordel", pela
editora Cultura Goiana. Em 1980, Carlos Drummond de Andrade,
como era de seu feitio, após ler alguns escritos da autora,
manda-lhe uma carta elogiando seu trabalho, a qual, ao ser
divulgada, desperta o interesse do público leitor e a faz
ficar conhecida em todo o Brasil.
Sintam a admiração do poeta, manifestada em carta dirigida a
Cora em 1983:
"Minha querida amiga Cora Coralina: Seu "Vintém de Cobre" é,
para mim, moeda de ouro, e de um ouro que não sofre as
oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e
comunicativas que já tenho lido e amado. Que riqueza de
experiência humana, que sensibilidade especial e que lirismo
identificado com as fontes da vida! Aninha hoje não nos
pertence. É patrimônio de nós todos, que nascemos no Brasil
e amamos a poesia ( ...)." Editado pela Universidade Federal
de Goiás, em 1983, seu novo livro "Vintém de Cobre - Meias
Confissões de Aninha", é muito bem recebido pela crítica e
pelos amantes da poesia. Em 1984, torna-se a primeira mulher
a receber o Prêmio Juca Pato, como intelectual do ano de
1983. Viveu 96 anos, teve seis filhos, quinze netos e 19
bisnetos, foi doceira e membro efetivo de diversas entidades
culturais, tendo recebido o título de doutora "Honoris
Causa" pela Universidade Federal de Goiás. No dia 10 de
abril de 1985, falece em Goiânia. Seu corpo é velado na
Igreja do Rosário, ao lado da Casa Velha da Ponte. "Estórias
da Casa Velha da Ponte" é lançado pela Global Editora.
Postumamente, foram lançados os livros infantis "Os Meninos
Verdes", em 1986, e "A Moeda de Ouro que um Pato Comeu", em
1997, e "O Tesouro da Casa Velha da Ponte", em 1989.
Texto extraído do livro "Vintém de cobre - Meias confissões
de Aninha", Global Editora — São Paulo, 2001, pág. 174.
O amor na velhice
Por: Olympia Salete
Rodrigues
A Cora Coralina que
todos conhecemos: aquela mulher que se descobriu poeta já
bem velhinha, depois de uma vida de luta, inclusive com um
casamento desastroso que ela carregou corajosamente e, só
após a morte do marido, conseguiu se ver em sua enorme e
verdadeira dimensão, como mulher e como poeta.
Escolhi este poema para ilustrar este Artigo por dois
motivos: o primeiro por pensar exatamente como ela ao
entregar o amor ao amado. O amor tem que ser entregue
SEMPRE, mesmo que não seja aceito. Porque o amor só se torna
concreto se chega às mãos do ser amado. E, se não entregamos
o amor que sentimos, esse amor fica maculado e se deforma,
pois foi sonegado, o que, em matéria de amor, é crime sem
perdão. O segundo motivo de minha escolha é colocar para
todos que me lêem reflexões sobre o amor na velhice, um
direito de todos nem sempre respeitado.
Uso sempre a palavra velho (ou velha)... Não gosto, quem me
lê já sabe, de idoso ou terceira idade... Ai, isso até me
dói.... rs..., pela tentativa de falsidade que encerra. A
palavra velho implica numa carga de sabedoria e experiência
que nos dá a vida à medida em que vivemos. E dessa carga
também quero falar.
Eu, pessoalmente, recebo uma série de observações que
poderiam até parecer desagradáveis e indelicadas. Só que não
as sinto assim porque as acolho com serenidade. Por falar eu
de amor, e por amar de verdade, muita gente entende que sou
atrevida, ridícula, inconseqüente etc. etc.... E, o estranho
disso é que não ouço tais críticas de pessoas jovens, mas de
pessoas que estão caminhando para o auge da maturidade
cronológica e atribuem a mim os fantasmas da própria velhice
que se aproxima. Os jovens, em geral, admiram minha coragem
de amar e declarar meu amor. Para eles, quase sempre, a
idade fica em segundo plano, não influi na relação ou no
diálogo. Mais ainda, eles até se declaram egoístas, querendo
aprender e sorver a sabedoria do velho com quem se
relacionam como amores ou como amigos. Daí eu concluir que
aqueles que tentam anular o direito de amar dos velhos,
estão apenas refletindo neles seus próprios medos, sua
incapacidade de amadurecer o amor na medida em que
amadurecem em idade.
É simples encarar a equação. Ninguém, em seu perfeito juízo,
negaria ao velho os direitos todos que a vida lhe dá: comer,
dormir, divertir-se, trabalhar, enfim, exercer plena e
conscientemente a vida que pulsa. Por que negar-lhes o
direito ao amor e ao sexo? Se isso fosse normal, certamente
esses desejos legítimos e saudáveis se arrefeceriam com o
passar do tempo. Se não arrefecem é porque a natureza sábia
reconhece sua validade. E, pelo que constatamos, a libido
não tem mesmo idade... Ela pede e grita no velho como pedia
e gritava no jovem que ele foi. E como aceitar uma restrição
que venha de fora? Como ceder à pressão e se enclausurar,
renunciar a viver esse lado exultante do eu?
Pensemos um pouco em nossos antepassados: pais, avós,
familiares que se entregaram a um marasmo na velhice por não
terem força para lutar contra preconceitos terríveis e tão
propalados que eles próprios os assumiam. O homem era até
mais prejudicado, pois vivia perseguido pela "fatalidade" da
impotência "obrigatória" depois de certa idade. E a grande
maioria ficava impotente mesmo, pelo poder da sugestão. Os
progressos da medicina vieram em seu socorro e hoje o
problema, se aparece, é contornável. As mulheres não eram
estigmatizadas por essa terrível previsão, mas o eram pelos
preconceitos e se fechavam em conchas a partir de certa
idade, acreditavam que a menopausa as tornaria menos fêmeas
e menos desejáveis. E está fechado o círculo: casais velhos,
frustrados e infelizes, apenas sentados indefesos na sala de
espera da morte. E assim vimos ou temos notícias de tantos
entes queridos que definharam depois de nos darem a vida, a
educação, a sua sabedoria, para que seguíssemos felizes os
nossos caminhos. E eu pergunto: isso é justo?
Convoco os ainda jovens para que abram suas mentes e
preparem seu futuro de velhos. Só assim chegarão à velhice
com a dignidade e a sabedoria que torna os velhos realistas,
felizes e seguros. Seus preconceitos de hoje, se existem, os
tornarão certamente velhos amargos, vítimas de si mesmos,
das crenças errôneas que acumularam e deixaram que se
cristalizassem.
Convoco os velhos como eu, ou mais velhos que eu, para
exercerem seus direitos, esclarecer aos jovens suas posições
e mostrar-lhes as verdades que viveram e que os tornaram
melhores. Entreguemos o amor ao ser amado, sem vergonha e
sem medo, e vivamos esse amor intensa e completamente, na
alma e no corpo. Se disserem que idade não é documento...,
mostremos que é sim, documento importante porque repleto de
experiência e de aprendizagens muitas vezes à custa de
sofrimento. Somos todos lindos, independente de aparência
física, porque é linda nossa alma e linda a nossa coragem de
amar! Portanto, não nos enterremos antes da hora. Vivamos,
vivamos! No momento certo, outros nos enterrarão, gratos
pelas lições que lhes deixamos.
Cora Coralina escreveu esse poema quando era muito mais
velha que eu. Tinha o rosto enrugado, o corpo alquebrado e
maltratado pela vida, mas tinha a alma lisa e pura, apesar
das pauladas que certamente levou, e tinha, ao escrever, a
certeza de sua grandeza como ser humano, um coração que
pulsava no ritmo da própria idade. Por isso admitia que o
amado a aceitasse ou não, interessava apenas torná-lo feliz
por saber-se amado. Que o verdadeiro amor só quer dar!
E termino louvando essa brasileira que soube morrer amando.
Exatamente como eu quero morrer, orgulhosa e valente...
Olympia Salete Rodrigues (Colaboradora do site
paralerepensar -Poetisa e escritora)
-
Cora
Coralina, quem é você?
-
Todas as vidas
-
Mulher da vida
-
ANTIGUIDADES
-
Velho Sobrado
-
Conclusões de
Aninha
-
Aninha e suas
pedras
-
Assim eu vejo a
vida
-
O cântico da
terra
-
Mascarados
Sou
mulher como outra qualquer.
Venho do século passado
e trago comigo todas as idades.
Nasci numa rebaixa de serra
Entre serras e morros.
“Longe de todos os lugares”.
Numa cidade de onde levaram
o ouro e deixaram as pedras.
Junto a estas decorreram
a minha infância e adolescência.
Aos
meus anseios respondiam
as escarpas agrestes.
E eu fechada dentro
da imensa serrania
que se azulava na distância
longínqua.
Numa
ânsia de vida eu abria
O vôo nas asas impossíveis
do sonho.
Venho do século passado.
Pertenço a uma geração
ponte, entre a libertação
dos escravos e o trabalhador livre.
Entre a monarquia caída e a república
que se instalava.
Todo
o ranço do passado era presente.
A brutalidade, a incompreensão, a ignorância, o
carrancismo.
Os castigos corporais.
Nas casas. Nas escolas.
Nos quartéis e nas roças.
A criança não tinha vez,
Os adultos eram sádicos
aplicavam castigos humilhantes.
Tive
uma velha mestra que já
havia ensinado uma geração
antes da minha.
Os métodos de ensino eram
antiquados e aprendi as letras
em livros superados de que
ninguém mais fala.
Nunca os algarismos me
entraram no entendimento.
De certo pela pobreza que marcaria
Para sempre minha vida.
Precisei pouco dos números.
Sendo eu mais doméstica do
que intelectual,
não escrevo jamais de forma
consciente e racionada, e sim
impelida por um impulso incontrolável.
Sendo assim, tenho a
consciência de ser autêntica.
Nasci para escrever, mas, o meio,
o tempo, as criaturas e fatores
outros, contra-marcaram minha vida.
Sou
mais doceira e cozinheira
Do que escritora, sendo a culinária
a mais nobre de todas as Artes:
objetiva, concreta, jamais abstrata
a que está ligada à vida e
à saúde humana.
Nunca recebi estímulos familiares para ser literata.
Sempre houve na família, senão uma
hostilidade, pelo menos uma reserva determinada
a essa minha tendência inata.
Talvez, por tudo isso e muito mais,
sinta dentro de mim, no fundo dos meus
reservatórios secretos, um vago desejo de
analfabetismo.
Sobrevivi, me recompondo aos
bocados, à dura compreensão dos
rígidos preconceitos do passado.
Preconceitos de classe.
Preconceitos de cor e de família.
Preconceitos econômicos.
Férreos preconceitos sociais.
A
escola da vida me suplementou
as deficiências da escola primária
que outras o destino não me deu.
Foi
assim que cheguei a este livro
Sem referências a mencionar.
Nenhum primeiro prêmio.
Nenhum segundo lugar.
Nem
Menção Honrosa.
Nenhuma Láurea.
Apenas a autenticidade da minha
poesia arrancada aos pedaços
do fundo da minha sensibilidade,
e este anseio:
procuro superar todos os dias
Minha própria personalidade
renovada,
despedaçando dentro de mim
tudo que é velho e morto.
Luta, a palavra vibrante
que levanta os fracos
e determina os fortes.
Quem
sentirá a Vida
destas páginas...
Gerações que hão de vir
de gerações que vão nascer.
(Meu
Livro de Cordel, p.73 -76, 8°ed, 1998)
Vive
dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando pra o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
– Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.
Mulher da Vida,
Minha irmã.
De todos os tempos.
De todos os povos.
De todas as latitudes.
Ela vem do fundo imemorial das idades
e carrega a carga pesada
dos mais torpes sinônimos,
apelidos e ápodos:
Mulher da zona,
Mulher da rua,
Mulher perdida,
Mulher à toa.
Mulher da vida,
Minha irmã.’
(Poemas de Goiás e Estórias Mais, p.201, 1996)
Quando eu era menina
bem pequena,
em nossa casa,
certos dias da semana
se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.
Era um bolo econômico,
como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)
Eu era menina em
crescimento.
Gulosa,
abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom
e tão gostoso.
A gente mandona lá de
casa
cortava aquele bolo
com importância.
Com atenção. Seriamente.
Eu presente.
Com vontade de comer o bolo todo.
Era só olhos e boca e
desejo
daquele bolo inteiro.
Minha irmã mais velha
governava. Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina, tão delgada...
E fatias iguais às outras manas.
E que ninguém pedisse mais !
E o bolo inteiro,
quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado,
num armário, alto, fechado,
impossível.
Era aquilo, uma coisa
de respeito.
Não pra ser comido
assim, sem mais nem menos.
Destinava-se às visitas da noite,
certas ou imprevistas.
Detestadas da meninada.
Criança, no meu tempo
de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa
usava e abusava
de pretensos direitos
de educação.
Por dá-cá-aquela-palha,
ralhos e beliscão.
Palmatória e chineladas
não faltavam.
Quando não,
sentada no canto de castigo
fazendo trancinhas,
amarrando abrolhos.
"Tomando propósito".
Expressão muito corrente e pedagógica.
Aquela gente antiga,
passadiça, era assim:
severa, ralhadeira.
Não poupava as
crianças.
Mas, as visitas...
- Valha-me Deus !...
As visitas...
Como eram queridas,
recebidas, estimadas,
conceituadas, agradadas !
Era gente superenjoada.
Solene, empertigada.
De velhas conversas
que davam sono.
Antiguidades...
Até os nomes, que não
se percam:
D. Aninha com Seu Quinquim.
D. Milécia, sempre às voltas
com receitas de bolo, assuntos
de licores e pudins.
D. Benedita com sua filha Lili.
D. Benedita - alta, magrinha.
Lili - baixota, gordinha.
Puxava de uma perna e fazia crochê.
E, diziam dela línguas viperinas:
"- Lili é a bengala de D. Benedita".
Mestre Quina, D. Luisalves,
Saninha de Bili, Sá Mônica.
Gente do Cônego, Padre Pio.
D. Joaquina Amâncio...
Dessa então me lembro bem.
Era amiga do peito de minha bisavó.
Aparecia em nossa casa
quando o relógio dos frades
tinha já marcado 9 horas
e a corneta do quartel, tocado silêncio.
E só se ia quando o galo cantava.
O pessoal da casa,
como era de bom-tom,
se revezava fazendo sala.
Rendidos de sono, davam o fora.
No fim, só ficava mesmo, firme,
minha bisavó.
D. Joaquina era uma
velha
grossa, rombuda, aparatosa.
Esquisita.
Demorona.
Cega de um olho.
Gostava de flores e de vestido novo.
Tinha seu dinheiro de contado.
Grossas contas de ouro
no pescoço.
Anéis pelos dedos.
Bichas nas orelhas.
Pitava na palha.
Cheirava rapé.
E era de Paracatu.
O sobrinho que a acompanhava,
enquanto a tia conversava
contando "causos" infindáveis,
dormia estirado
no banco da varanda.
Eu fazia força de ficar acordada
esperando a descida certa
do bolo
encerrado no armário alto.
E quando este aparecia,
vencida pelo sono já dormia.
E sonhava com o imenso armário
cheio de grandes bolos
ao meu alcance.
De manhã cedo
quando acordava,
estremunhada,
com a boca amarga,
- ai de mim -
via com tristeza,
sobre a mesa:
xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o bolo,
e um cheiro enjoado de rapé.
Cora Coralina
-
-
Velho Sobrado
-
- Um montão disforme.
Taipas e pedras,
- abraçadas a grossas
aroeiras,
- toscamente
esquadriadas.
- Folhas de janelas.
- Pedaços de batentes.
- Almofadados de
portas.
- Vidraças
estilhaçadas.
- Ferragens
retorcidas.
-
- Abandono. Silêncio.
Desordem.
- Ausência, sobretudo.
- O avanço vegetal
acoberta o quadro.
- Carrapateiras
cacheadas.
- São-caetano com seu
verde planejamento,
- pendurado de
frutinhas ouro-rosa.
- Uma bucha de
cordoalha enfolhada,
- berrante de flores
amarelas
- cingindo tudo.
- Dá guarda,
perfilado, um pé de mamão-macho.
- No alto, instala-se,
dominadora,
- uma jovem gameleira,
dona do futuro.
- Cortina vulgar de
decência urbana
- defende a nudez
dolorosa das ruínas do sobrado
- - um muro.
-
- Fechado. Largado.
- O velho sobrado
colonial
- de cinco sacadas,
- de ferro forjado,
- cede.
-
- Bem que podia ser
conservado,
- bem que devia ser
retocado,
- tão alto, tão
nobre-senhorial.
- O sobradão dos
Vieiras
- cai aos pedaços,
- abandonado.
- Parede hoje. Parede
amanhã.
- Caliça, telhas e
pedras
- se amontoando com
estrondo.
- Famílias alarmadas
se mudando.
- Assustados -
passantes e vizinhos.
- Aos poucos, a "
fortaleza " desabando.
-
- Quem se lembra?
- Quem se esquece?
-
- Padre Vicente José
Vieira.
- D. Irena Manso
Serradourada.
- D. Virgínia Vieira
- - grande dama de
outros tempos.
- Flor de distinção e
nobreza
- na heráldica da
cidade.
- Benjamim Vieira,
- Rodolfo Luz Vieira,
- Ludugero,
- Angela,
- Débora, Maria...
- tão distante a gente
do sobrado...
-
- Bailes e saraus
antigos.
- Cortesia. Sociedade
goiana.
- Senhoras e
cavalheiros...
- -tão desusados...
- O Passado...
-
- A escadaria de
patamares
- vai subindo...
subindo...
- Portas no alto.
- À direita. À
esquerda.
- Se abrindo,
familiares.
-
- Salas. Antigos
canapés.
- Cadeiras em ordem.
- Pelas paredes
forradas de papel,
- desenho de
querubins, segurando
- cornucópia e laços.
- Retratos de
antepassados,
- solenes,
empertigados.
- Gente de dantes.
-
- Grandes espelhos de
cristal,
- emoldurados de
veludo negro.
- Velhas credências
torneadas
- sustentando
- jarrões pesados.
- Antigas flores
- de que ninguém mais
fala!
- Rosa cheirosa de
Alexandria.
- Sempre-viva.
Cravinas.
- Damas-entre-verdes .
- Jasmim-do-cabo.
Resedá.
- Um aroma esquecido
- - manjerona.
Cora Coralina
-
Conclusões de Aninha
Estavam ali parados. Marido e mulher.
Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça
tímida, humilde, sofrida.
Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu
rancho,
e tudo que tinha dentro.
Estava ali no comércio pedindo um auxílio para
levantar
novo rancho e comprar suas pobrezinhas.
O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,
entregou sem palavra.
A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou,
aconselhou,
se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar
E não abriu a bolsa.
Qual dos dois ajudou mais?
Donde se infere que o homem ajuda sem participar
e a mulher participa sem ajudar.
Da mesma forma aquela sentença:
"A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar."
Pensando bem, não só a vara de pescar, também a
linhada,
o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso
e ensinar a paciência do pescador.
Você faria isso, Leitor?
Antes que tudo isso se fizesse
o desvalido não morreria de fome?
Conclusão:
Na prática, a teoria é outra.
Cora Coralina
Não
te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces.
Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.
Cora Coralina (Outubro, 1981)
A
vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.
Cora
Coralina
Eu
sou a terra, eu sou a vida.
Do meu barro primeiro veio o homem.
De mim veio a mulher e veio o amor.
Veio a árvore, veio a fonte.
Vem o fruto e vem a flor.
Eu
sou a fonte original de toda vida.
Sou o chão que se prende à tua casa.
Sou a telha da coberta de teu lar.
A mina constante de teu poço.
Sou a espiga generosa de teu gado
e certeza tranqüila ao teu esforço.
Sou a
razão de tua vida.
De mim vieste pela mão do Criador,
e a mim tu voltarás no fim da lida.
Só em mim acharás descanso e Paz.
Eu
sou a grande Mãe Universal.
Tua filha, tua noiva e desposada.
A mulher e o ventre que fecundas.
Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.
A ti,
ó lavrador, tudo quanto é meu.
Teu arado, tua foice, teu machado.
O berço pequenino de teu filho.
O algodão de tua veste
e o pão de tua casa.
E um
dia bem distante
a mim tu voltarás.
E no canteiro materno de meu seio
tranqüilo dormirás.
Plantemos a roça.
Lavremos a gleba.
Cuidemos do ninho,
do gado e da tulha.
Fartura teremos
e donos de sítio
felizes seremos.
Cora
Coralina
Saiu
o Semeador a semear
Semeou o dia todo
e a noite o apanhou ainda
com as mãos cheias de sementes.
Ele semeava tranqüilo
sem pensar na colheita
porque muito tinha colhido
do que outros semearam.
Jovem, seja você esse semeador
Semeia com otimismo
Semeia com idealismo
as sementes vivas
da Paz e da Justiça.
Cora
Coralina
O poema acima,
inédito em livro, foi publicado pelo jornal "Folha
de São Paulo" — caderno "Folha Ilustrada", edição de
04/07/2001. (http://www.releituras.com/coracoralina_mascarados.asp)
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