OS PRESÉPIOS
Dinacy Corrêa
[...]Não temais, porque eis aqui vos trago novas de grande alegria, que será para todo o povo: pois, na cidade de Davi, vos nasceu hoje o Salvador, que é Cristo, o Senhor. E isto vos será por sinal: Achareis o menino envolto em panos, e deitado numa manjedoura. E, no mesmo instante, apareceu com o anjo uma multidão dos exércitos celestiais, louvando a Deus, e dizendo: [...] E foram, apressadamente, e acharam Maria, e José, e o menino deitado na manjedoura. E, vendo-o, divulgaram a palavra que acerca do menino lhes fora dita. E todos os que a ouviram se maravilharam do que os pastores lhes diziam. Mas Maria guardava todas estas coisas, conferindo-as em seu coração. [...](Luc. 1,20)
O espírito do Natal é contagiante, universal. Em dezembro, toda a cristandade sente-se motivada a comemorar o advento, a render homenagens ao Menino-Deus. E quantas maneiras diferentes de fazê-lo! “Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso” – é um velho e sábio dito popular.
Na minha cidade, os presépios enchiam de ternura, os natais da minha infância. Em Arari, daqueles tempos, toda a família “que se prezasse” armava o seu presépio na sala de estar, no período natalino. Para nós, crianças daquela época, era um encantamento. Deslumbradas, postávamo-nos, todas as noites, ante o presépio, a contemplar, o Menino entre as palhas da creche.
Além do motivo religioso, o presépio cumpria uma função didática: narrava a história do nascimento de Cristo, através dos quadros compostos pelas figuras: a estrela-guia, os magos a caminho de Belém, a gruta, a manjedoura, o Menino, adorado pelos reis, os pastores… os anjos, a Virgem, ao lado de São José… o boi, o jumento, o carneirinho…
A Ladainha (litania), era entoada em latim (mas se faltasse a tradicional rezadeira, era substituída pelo recitar do terço). Cantos alusivos, muita alegria e distribuição de chocolate com bolo aos convivas. Uma festa!
Os presépios refletem o espírito religioso de um povo. Têm sua história, suas origens – que valem a pena ser conhecidas e/ou recordadas, como testemunho do passado e referência para o futuro. São o retrato de uma época, de uma boa nova que se repete, através dos anos.
“O que é já foi; o que de ser, também já foi; Deus fará renovar-se o que se passou” (Ecl. 3:15).
Como estará o presépio nos dias de hoje? Em extinção? A evolução dos tempos modernos, a renovação continuada das ideias, o progresso, em sua marcha ininterrupta, têm contribuído para tanto? Ainda se nos é dado encontrar um presépio familiar, nos natais da nossa contemporaneidade? Estão sendo substituídos pela ÁRVORE e outros arranjos similares? E os que sobrevivem, ainda refletem o mesmo colorido de outrora? O presépio ainda se impõe, como tradição, nas residências, no ambiente familiar? Questões como estas motivaram-nos a proceder estudos e pesquisas, anos atrás
[1], no objetivo de registrar, documentar esse traço da cultura de um povo, um dado grupo social, em seus usos e costumes, tradições… seus influxos e reflexos no comportamento humano.
Não resta dúvida de que o Nascimento de Cristo foi, é, será, sempre, o maior acontecimento de todos os tempos. Grandioso, inesquecível, imprimiu um marco indelével no coração da cristandade, que o revive, através das eras, nas comemorações do Natal. A mensagem luminosa de Amor; o exemplo magno e edificante de humildade, que envolve o episódio, na simplicidade da manjedoura, numa gruta de Belém, é celebrado por todos os povos, sob as mais variadas nuances, sendo a pioneira e universal, entre todas, a arte do presépio – um costume secular, uma representação da Natividade, em memória ao “Sol Nascente que nos veio visitar”.
Todo um ano de estudos e pesquisas, de contato real com o fenômeno, revelou-nos que o presépio ainda se faz marcante, na comemoração/rememoração do Natal. Tanto nas famílias das convencionadas classe alta, média, como por entre os menos favorecidos socioeconomicamente. Nos sobrados coloniais, nos casarões de azulejo, palacetes, mansões… nas casas antigas e modernas, ricas e modestas, até nas palafitas do mangue, pode-se encontrar o Menino-Jesus no Presépio.
E aqui um convite aos nossos virtuais leitores: Vamos nos aproximar do presépio? Conhecê-lo mais de perto, a começar pela etimologia da palavra, origem, história, propagação… Vamos?! Sigamos por aqui:
*ETIMOLOGIA
[2] – presépio, do latim
praesepium: curral, estrebaria, lugar onde se recolhe o gado; estábulo ou escultura com figuras, reconstituindo o Natal de Jesus, Adoração dos pastores, creche. Lusitano do Minho: barraca, qualquer armação de madeira. Na etimologia, o termo designa toda e qualquer representação plástica do “
avant-première” da vida de Cristo, na manjedoura que lhe serviu de berço.
As Escolas de Arte Cristã representaram, com frequência e entusiasmo, cenas da Natividade. E artistas consagrados dedicaram-se à arte do presépio. Com o passar dos anos, todavia, a prática se foi limitando, restringindo sua significação aos grupos de figuras modelados em barro, de natureza rústica e popular. Conjuntos que encerravam uma visão mais ou menos fantástica da Nascimento. A própria arte barroca, malgrado caracterizar-se por exemplares ricos em planejamento e esmero nos detalhes, produziu-os, também, no cunho popular, nele se destacando os famosos presépios napolitanos.
Na Península Ibérica, a arte em referência também foi muito cultivada, nela transparecendo a influência italiana. Verificamos, ainda, que na arte colonial brasileira, o gênero se fez presente, sendo muito apreciado. O Museu da Inconfidência, de Minas Gerais, conserva figuras esculpidas pelo “Aleijadinho
[3]
*UM POUCO DE HISTÓRIA – Oriundo da Itália, o presépio tem como precursor São Francisco de Assis, “que foi o primeiro a conceber a representação do Nascimento de Jesus em Belém, na localidade conhecida por
Greccio, em 1223, pela festa do Natal
[4]” (EMÍLIA, 1976).
Sobre Francisco de Assis, admirável no seu desapego aos bens terrenos, conta a tradição que, estando sua mãe em grandes aflições, quando do seu nascimento, surgiu, à porta da casa, como por encanto, um peregrino, aconselhando, fosse levada, a parturiente, a uma estrebaria, onde a criança viria à luz sem perigo. Dito e feito, tudo aconteceu conforme recomendara o peregrino, para surpresa de todos. De forma que, pode-se dizer, o nascimento de Francisco de Assis assemelha-se ao de Cristo, numa circunstância feliz, como que profetizando a sua obra futura, de difusão do presépio.
E a tradição ainda tem mais a revelar sobre a origem do presépio. Através dela, aprendemos que foi do Oriente (Belém) que o poverello trouxe para o Ocidente, esta nova forma de homenagear o Deus-Menino.
Conta-se que Francisco empreendeu longas e exaustivas viagens a Belém (naturalmente, que andando a pé), De lá, é que se dirigiu a Greccio (Itália, em 1223), conheceu João Velita, de quem se tornou dileto amigo e este lhe doou um lindo terreno nas montanhas de Riete. A convivência com Francisco, ensinara a Velita que o novo amigo apreciava, sobremaneira, a Natureza, por excelência os lugares ermos e tranquilos. O local não poderia ser mais encantador e agradável aos olhos: flores em abundância, grutas, planície verdejante… Um verdadeiro esplendor de paisagem. Numa dessas grutas, Francisco realizou o sublime e grande sonho que vinha alimentando: representar, com muita objetividade, o Natal de Jesus. Assim, foi organizado o primeiro presépio de que se tem notícia.
Tomás Celano
[5] (um dos biógrafos de São Francisco), transmite-nos a mensagem de Francisco a seu amigo João Velita. Ouçamo-lo, que diz:
“João, se queres que celebremos em Grecio a festa do Senhor, faze os seguintes preparativos que te vou indicar: desejo, realmente, comemorar de uma forma sugestiva, o nascimento do Menino de Belém. Por isso, deves preparar lá na floresta, uma manjedoura repleta de feno e levar para lá um boi, um asno, tudo como em Belém”
E assim foi feito. Ao lado desse presépio, foi erguido um altar, no qual foi celebrada a Santa Missa de Natal. E houve um sermão pronunciado por Francisco, seguindo-se ao Evangelho.
Os povo do local, fascinado pela beleza do espetáculo, não resistiu. Subiu a montanha, levando tochas acesas, a reverenciar o presépio. Os religiosos da ordem, ao som de flautas e outros instrumentos, cantavam hinos em louvor do Natal.
Partindo daí, o presépio propagou-se pela Itália e pelo mundo inteiro.
EM PORTUGAL, armou-se o primeiro presépio em 1391, por iniciativa das freiras de Salvador. Já, no século XV, o assunto vai ganhando estilo e caráter popular e o tema hierático se vai transformando no auto religioso, de movimentação contemporânea portuguesa. É a partir daí, que se lhe vão sendo introduzidos o canto, a dança, a dramatização, com adaptação dos temas populares e louvores ao Divino Natal.
E eis que surge a singular figura de Gil Vicente – um dos pioneiros da arte teatral – brilhando nas cerimônias do Paço, quando, por solicitação da Rainha D. Beatriz, criou o primeiro auto pastoril (1502), de que se tem notícia, assim coroando de êxito as representações natalinas por todo o reinado de D. Manuel.
AQUI NO BRASIL, como não poderia ser diferente, o presépio é de influência portuguesa. Um dos muitos costumes que herdamos do nosso país descobridor. E foram, precisamente os jesuítas, a implantarem o costume aqui em nossa terra e disto se tem notícia. Padre Fernão Cardim, nas missivas que encaminhava ao Provincial em Portugal, informando sobre a Missão do Padre Cristóvão de Gouveia, registrava: “Tivemos, pelo Natal (Bahia, 1583), um devoto presépio na povoação onde algumas vezes nos ajuntávamos com boa e devota música, e o irmão Barnabé nos alegrava com seu berimbau”. No ano seguinte (1584), falava do Rio de Janeiro: “Neste colégio, tivemos pelo Natal um presépio muito devoto, que fazia esquecer os de Portugal, e também cá, Nosso Senhor dá as mesmas consolações avantajadas. O irmão Barnabé Telo fez a Lapa, e às noites, nos alegrava também com o seu berimbau
[6]”
EM PERNAMBUCO, a prática tem início em 1635, na cidade de Olinda e “por obra e graça” do piedoso Frei Gaspar de Santo Agostinho (franciscano), falecido aos 90 anos de idade. De Olinda, a arte passou a ser imitada por todo o Brasil, constando sempre da representação de figuras, na cena de Adoração do Menino Jesus na Manjedoura, Nossa Senhora, São José, os pastores, séquitos cercando o ambiente – elementos configurativos, do presépio do nonagenário franciscano.
Exibidos nas igrejas e casas residenciais, em dezembro, segundo o hábito português, os presépios constituíam-se num foco de atração a inúmeros fiéis e devotos. Após a contemplação respeitosa, as orações contritas, era praxe, também, a espórtula, por parte dos visitantes.
E ainda, sobre a popularidade do presépio, o interessante registro de Luís da Câmara Cascudo em Antologia do Folclore Brasileiro (verbete alusivo):
Os presépios, sem os bailes pastoris foram do especial agrado carioca. O cônego Felipe da Cunha e Sousa, depois Monsenhor, falecido a 15.12.1812, teve seu presépio em Madre de Deus visitado pelo príncipe regente D. João. Vieira Fazenda falava saudoso do presépio do Barros (Francisco José de Barros)marceneiro da Rua dos Ciganos (atual Conceição), que o próprio Imperador D. Pedro fora olhar…
PRESÉPIOS E MAIS PRESÉPIOS – Como pudemos observar, da feliz iniciativa de Francisco de Assis, que encantou o mundo com o seu presépio ao natural, o motivo se foi difundindo, ganhando força de tradição, enriquecendo-se, nos valores e na confecção das personagens que o compõem. Vindo, a partir daí, todo o esmero e engenho de que é portadora a inteligência humana, posto a serviço da confecção do presépio, mesmo a eletricidade.
A piedade popular tem a virtude de integrar ritos e temas à vida cotidiana. E o povo, conservando a tradição herdada dos primórdios da civilização cristã, fiel ao seu respectivo credo religioso, vem aprimorando, ao longo do tempo, essa arte tão singela, tão humana, para regozijo, cada vez maior, nas manifestações do Natal.
O presépio, aqui no Brasil, é uma realidade que se verifica em todos os Estados, embora (e com base no eminente veredicto do grande mestre Luís da Câmara Cascudo), ultimamente, com menos frequência e já sem o brilhantismo e a espontaneidade de outrora. Assim, quem sabe, anos, décadas, séculos, mais tarde, dele restarão apenas as lembranças gravadas na memória do tempo… Sobretudo, depois da divulgação e popularização da árvore – que lhe tem furtado a primazia de elemento material mais característico das festas natalinas. Não obstante, é possível constatar sua existência, ainda em nossos dias, principalmente no Norte e Nordeste do país.
A título de enriquecimento cultural sobre o assunto, sugerimos e convidamos (ainda) o nosso leitor virtual para uma excursão pelo mundo do presépio, através da leitura, afim de que possamos conhecer mais de perto essa manifestação folclórico-religiosa, tão significativa para todos nós.
No livro
Lembrando o Natal e suas tradições, de Angélica de Rezende
[7]encontramos interessantes alusões e referências a presépios de tradicionais, aqui do Brasil. Com a devida vênia, elencamos, nesta oportunidade, alguns desses exemplares. Assim, vejamos…
PRESÉPIOS EM DESFILE
- O presépio de Piripau, Belo Horizonte-MG, todo movido a eletricidade, numa perfeição tal, que lhe garante, a cada ano, uma fama sempre renovada;
- O presépio de Passos-MG, onde tudo se movimentava, produzindo ruídos característicos e que deixou de ser exibido por conta da saúde de seu organizador, para tristeza e descontentamento dos seus apreciadores;
- Em Bananal-SP, Fazenda Bela Vista, na capelinha local, dois presépios eram armados a cada ano – um maior, outro menor, este último, procedente da França (1902), legado de um parente do proprietário, tendo como figura de destaque um Menino Jesus em biscuit, num bonito oratório envidraçado;
- Notável era, também, o presépio da Igreja de São Francisco de Paula, em Ouro Preto, que atraía inúmeros devotos vindos de longe, para lhe admirar a beleza e arte;
- O presépio de Aparecida do Norte, todo eletrificado e muito apreciado, tanto pelos citadinos, como pelos romeiros, vindos de longínquas partes, em visita à cidade da milagrosa padroeira do Brasil;
- O presépio da Igreja de São José, na Rua da Misericórdia (RJ), que reconstitui, com fidelidade e inteligência, a Belém dos tempos de Cristo;
- O presépio da Casa dos Expostos, à Rua Marques de Abrantes (RJ), Onde, muitas vezes, integravam na composição das cenas, figuras vivas, como o Menino-Jesus, sempre representado por algum dos últimos recém-nascidos, presente entre os espectadores;
- Em Alagoas, o folclorista Téo Brandão presta o seu relato sobre um presépio que vem sendo organizado, há mais de meio século (hoje, quem sabe, há quase um século), pela família Souto – da qual o referido pesquisador recebeu cópia do texto e das músicas alusivas, sob o título de Jornada de Natal.
Sem olvidar os famosos e memoráveis presépios da histórica e lendária Bahia, bem como os da famosa cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte, damos por circunstancialmente encerrado este pequeno desfile, ressaltando que, Natal, como o próprio nome já o sugere, é a terra das lapinhas e dos pastoris.
Em São Paulo, foi inaugurado o Museu do Presépio, no Parque de Ibirapuera, pela senhora Lourdes Milett, om o apoio da prefeitura local. Tal é o interesse que desperta o tema da Natividade, em todo o mundo, que o museu vem recebendo grande número de peças avulsas, dentre as quais setecentas peças de um valioso presépio Napolitano do Sec. XVIII – oferta do Sr. Francisco Matarazzo.
J. de Figueiredo Filho, em sua monografia Folclore no Cariri (publicada em 1962, pela Imprensa Universitária do Ceará), dedica um capítulo inteiro às lapinhas e pastoris e fala da devoção especial do presépio, pelo cearense, enquanto vai declinando outros do seu conhecimento em outros Estados. Transcrevendo, oportunamente, com a devida vênia, alguns trechos do citado autor, nosso intuito é dar uma maior extensão ao estudo de um motivo tão interessante quanto universal e profundo, como este a que ora nos atemos.
Segundo J. de Figueiredo Filho, em sua já referida obra, o presépio vivo apareceu no Crato, de 1959 para 1960, tendo sido divulgado na imprensa e rádios-emissoras do Ceará, pelo repórter João Lindinberg de Aquino. Acrescenta mais o autor, que todos os figurantes da lapinha “eram pessoas vivas, se bolindo, falando ou chorando como o Menino Deus”. E que “os Reis Magos estavam bem caraterizados e foi o sucesso da temporada de Natal”.
Páginas adiante, Figueiredo conta-nos que a lapinha mais suntuosa e bonita que já viu foi em Januária, Minas Gerais, na residência de um telegrafista sobralense. O ano era 1929, e o autor garante que ficou surpreso e encantado com a arte e o luxo do presépio, que tomava conta da metade do salão, apresentando uma variedade de cores estonteantes, cascatas em miniaturas, derramando água em pequenos rochedos artificiais. E as figuras, todas dispostas em harmonia artisticamente perfeita.
Enfatiza, porém, que foi no Rio São Francisco, o lugar onde se deparou com o maior número de presépios deste mundo: “Cada habitação, por mais modesta, possuía a sua lapinha, erguida na sala da frente, adornada de folhas verdes e flores”.
E assegura que o presépio mais original, dentre todos do seu conhecimento, foi um do Sítio Lameiro, propriedade do Sr. José Vicente, organizado pela esposa deste, D. Isabel de Alencar Peixoto, conhecida como Dona Beleza.
Descrito pelo autor, na sua monografia (já transformada em livro), o auto da lapinha de D. Beleza surge como um verdadeiro monumento folclórico, cuja tradição, herança do século passado, se vem mantendo, ininterruptamente, ao longo dos anos…
Rico em originalidade e beleza, o referido auto despertou-nos profundamente a atenção. Lendo-o, identificamos a letra de uma canção que costumávamos ouvir, em criança, na voz da nossa saudosa mãe, ao nos “botar para dormir” – o que me deixou-nos muito emocionada. Sempre nos perguntávamos, de onde nossa mãe aprendera aquela modinha tão interessante, que cantava para nós, sempre, à boca da noite (além de outras). Com esta pesquisa descobrimos, como que por acaso, que ela, a cantiga, vem das profundezas da alma dos povos, através das gerações. Não poderíamos furtar-nos a transcrever um de seus trechos e, para tanto, também um excerto do autor em referência. Ouçamo-lo, que relata, explicativo:
“O Tapuia saía das selvas e ia adorar o Menino-Deus que nascera. Na lapinha, não são somente os pastores e os reis magos os adoradores do Menino-Jesus. Caboclos, em magotes, também O reverenciavam com cânticos e oferendas do mato. Mas, o tapuia vinha isolado, com cinta de penas sobre o vestido curto, cocar à cabeça e com arco e flecha nas mãos. Cantavas a modinha antiga, bem conhecida no século passado e cheia de encanto e sentimentalismo:
Formosa tapuia
Que fazes aqui
Nas matas sombrias
Do agreste sertão?
As matas são feias
São frias e tristes
Não temes tão moça
Morrer de sezão?
A modinha gira em torno do convite que faz um citadino para a indiazinha abandonar o mato e recolher-se à sedução da cidade. Mas a caboclinha tem resposta segura para todas as palavras de fascínio:
Não quero carinhos
Nas matas nasci
Se delas não gostas
Não fiques aqui”
Esse é o tipo da lapinha regionalizada.
Prosseguindo na nossa (pseudo)excursão, é hora de partir para a Europa, num tour pelo mundo do presépio, traçando, assim, as nossas paralelas, estabelecendo comparações… numa sintonia mais estreita com essa prática tão antiga e amplamente difundida entre o povo cristão. Deveras curioso é constatarmos que, a partir da referência de Lucas, no seu Evangelho, o tema da Natividade expande-se, numa dimensão infinita, estampando-se em todas as manifestações da arte, invadindo o espírito popular, imprimindo sua força de expressão, influenciando o comportamento de toda uma civilização cristã, tornando-se um motivo folclórico de caráter e repercussão universal.
Para uma rápida noção do que significa a arte do presépio em alguns pontos da Europa, teremos, a seguir, um belo artigo traduzido de um periódico francês, através do qual aprenderemos mais sobre esta maneira tão peculiar de relembrar o Natal de Jesus – motivo que desperta, nesses povos, um sempre crescente e renovado interesse, comum ao que sentimos deste lado do Globo…
OUVE-SE POR TODA A PARTE O CARRILHÃO (Rosine Brun)
Natal, festa popular, por excelência, sempre empenhada em conciliar a tradição vinda do mais profundo das eras aos dogmas teológicos, mesclando ritos sagrados às imagens da vida cotidiana. É a expressão perfeita da creche, descrita nos evangelhos apócrifos, que tanto nos desabrocham a imaginação! A crença popular, tentando ultrapassar a Verdade Revelada e a história, embeleza o tema, em todas as maravilhas da legenda. A inspiração dos poetas, a sensibilidade criativa dos artistas fazem o resto…
Mil e um presépios
O curioso e admirável é que tais cenas, conservando seus detalhes característicos, prestam-se tão bem ao desenvolvimento da grande arte (Dürer, Lorenzo de Credi, Filippino de Lippi) ou às variações ternas e ingênuas da arte popular. Por outro lado, se conhecemos bem o repertório dos mistérios da Idade Média que, saídos da liturgia posta em ação, foram eclodir no teatro profano (passando por cerimônias burlescas, mesmo no interior das igrejas), ignoramos, frequentemente, que um ramo dessa dramaturgia continua a florir, fluentemente, nos teatros de marionetes…
Em Liège (França-Musée de la Wallon), está um dos mais belos exemplos: a mais tocante das representações, que é a do presépio falante ou “grande tragédia da Natividade”.
A Itália é célebre por seus presépios onde os personagens, em tamanho natural, são vestidos, suntuosamente. Os manequins de cera lembram, estranhamente, as divindades pagãs, tão apreciadas pelos povos do Mediterrâneos.
Cada região teceu, através dos séculos, suas próprias tradições de Natal. Em Auvergne (França), por exemplo, as figurinhas são em madeira e vestem-se à moda regional. Em Besançon, a habilidade reconhecida de artesãos-relojoeiros, transforma os bonecos em autômatos, que representam as cenas da Natividade diante dos olhos, sempre maravilhados, dos espectadores. Esses marionetes constituem o traço de união entre os espetáculos litúrgicos e a elaboração do presépio familiar, que permanece até hoje. Todos os materiais são utilizados: madeira, palha, argila, vidro esmaltado, como em NEVERS.
A arte dos esmaltadores
A arte dos esmaltadores, durante mais de três séculos, fez parte da “Civilização popular”. Desde sua origem, em Nevers, é marcada por esse espírito de popularidade, conservando-o, sucessivamente, até serem criados outros centros regionais. Naturalmente que essa arte caminhará assim, em Provença, e quem sabe, até mais além, a misturar-se com uma outra corrente popular – a dos presépios.
No final do século XVII, sucedendo-se aos grandes presépios da Igreja, surgem os presépios familiares, cuja paternidade é atribuída a São Francisco de Assis. Os personagens, em esmalte, vêm disputar o lugar com as figuras em cera ou em cartons-pâtes, em nichos envidraçados.
Os primeiros presépios em vidro fibroso (verre-filé), os mais antigos de que se tem notícia, datam do princípio do século XVIII (para não dizer XVII), os quais conservavam, ainda, o estilo. Na “Nativité em verre-filé”, guardadas no Museu das Artes Decorativas de Paris, as personagens que vêm adorar o Menino, apresentam-se vestidas como os lacaios e servidores das peças de Molère!! As vestes, os culotes em cores vivas, dos homens, bem como os penteados e os coletes das mulheres, a disposição teatral das cenas religiosas, onde todos os atores são como que mergulhados no deslumbramento, no maravilhoso e extraordinário, com as sobrancelhas em acento circunflexo, olhos arredondados, são de um realismo surpreendente de simplicidade.
Após a Revolução, os presépios em verre-filé são abandonados, em aproveitamento de uma outra moda, trazida pelas figurinhas de argila (santons), adquiridas nas feiras, destacando-se as de Meilhan e as de Arles, permanentes durante as três primeiras semanas de dezembro (de 04 a 24), período em que os presépios são instalados. O presépio familiar torna-se, pois, um rito, em cada Natal. As “Nativités”, construídas por especialistas (as mais das vezes comunidades religiosas, que dispõem de seus próprios recursos, para a confecção dos presépios e relicários – Musée Arlatan/Arles), conservadas por muitos anos, são postas de lado. Pais e filhos são empenhados em confeccionar, por si mesmos, a cada ano, o presépio familiar.
Em Provença – do Presépio à Pastoral
Uma evolução deveras marcante, opera-se, a partir do presépio “oficial”, voltado a representar, em Belém, o Natal de Jesus, cercado por seus pais, deitado entre o boi e o jumento, adorado por pastores e Magos. Desde os princípios do século XIX, já se notava, nos presépios, a infiltração de toda uma população provençal e palestina, carregada de presentes, os mais diversos, vindos de todas as partes, para adorar o Messias.
A eloquência popular se deu, partindo do tema religioso, com o fito de representar as personagens do cotidiano, com um senso agudo de observação e de valores. E, para nos convencermos disso, é suficiente observar alguns santons (figurinhas de presépio), em seus atributos, cores, hábitos. Cada detalhe é significativo: o ministro, algo de solene, com o seu hábito negro, seu farol e seu guarda-chuva vermelho; o tamborineiro, com seu chapéu de feltro negro, sua gravata (em nó folgado), o “taiolo” (espécie de cinto largo, enrolado várias vezes em torno da cintura), camisa e alça branca. É ele quem faz os anúncios, quem precede os cortejos, “que toca a alvorada às personalidades”; o caçador, fuzil a tiracolo e uma caça à mão; o pescador, anzol à linha, sentado ou de pé e a vendedora de peixes, semelhante àquela que passa nas ruas de Marselha, com as mãos nas ancas, portando, de cada lado, uma sacola presa ao braço por um fio, a balança romana à cintura. Ela se dirige ao estábulo, com sua oferenda de belos peixes de prata.
Entre os “santos” (e há dezenas), encontra-se toda a sorte de métiers familiares, numa vila provençal do último século, numa representação hierárquica, que vai, desde o ministro, aos artesãos (artífices) – o amolador, o marinheiro, a fiandeira, o estanhador, até o “Ravi” – um funcionário muito particular e interessante: esse personagem é, com efeito, o natural, o simplório da aldeia; ele não tem função específica; ingênuo, engraçado, mas de grande coração.
Através dessas figurinhas, pode-se fazer um verdadeiro estudo sociológico de um grupo humano do fim do século XIX, visto por si mesmo e do interior.
É emocionante de ver, com que finura e humor, às vezes, com que fidelidade e veracidade de julgamento, o santeiro faz, com algumas pinceladas, o retrato de seus concidadãos. A interpretação é perfeita e ao santeiro não falta inspiração, visto que ele traduz as figuras familiares, do seu dia a dia. Imagine-se qual não é a alegria de cada um, ao se encontrar diante desse teatro em miniatura, que é o presépio… Assimilação perfeita do tema religioso que, uma vez saído do lugar do culto, para animar o círculo familiar, toma um caráter tradicional e sagrado… (Do original On entend partout le carrillon – Rosine Brun. In: France Information-63, p. 09 a 12, 1978. trad. Da autora desta matéria)
Ainda sobre o Presépio na Europa, o depoimento de alguns europeus por nós entrevistados aqui em São Luís (alguns aqui já radicados, outros apenas de passagem), começando pelos portugueses.
IDALINA ROCHA GODINHO (hoje falecida) – portuguesa, integrante do grupo Lusitana (supermercados): “Na minha terra se festeja muito o Natal. Mas presépio, só mesmo na aldeia. Na cidade é a Árvore”.
INÁCIO MANUEL GRAVANITA – português do Algarves, da cidade de Lagoa (então com 18 anos, estudante de Filologia Germânica, na Galícia): “Aqui ainda se arma o presépio, tanto na cidade, como na aldeia. Acontece que, na cidade, em apartamentos novos, só armam a ARVORE DE NATAL”.
FREI OSVALDO (hoje também falecido), italiano e franciscano, do Convento do Carmo: “Na Itália é o presépio. A árvore é de origem protestante”.
ANIK DOS SANTOS – francesa de Saint Tropez (então professora da Aliança Francesa – quando ainda na Praça Gonçalves Dias). Note-se que, falando dos presépios da sua terra, ela não menciona a Árvore: “Na minha terra, se faz muito presépio. As pessoas vão cantando, em frente, com o pão”.
PE. LUÍS MARIA LAMAMIÉ DE CLAIRC ALONSO – espanhol (então pároco da Igreja dos Remédios): “O Natal, na Espanha, é muito familiar e o presépio é muito importante. Todas as famílias o fazem e tem até concursos na cidade. Os presépios de lá têm movimento, jogo de luzes, cascatas etc. Quando eu vim de lá, há 20 anos, só se usava mesmo o presépio, na comemoração do Natal. Lá os Reis Magos são muito importantes. Há cavalgadas deles (os Reis Magos), pelas ruas, a 06 de janeiro. São eles que entregam os presentes. As crianças da Espanha acreditam é nos Reis Magos (em vez do Papai Noel). É para eles que escrevem cartas, pedindo presentes. E botam até no correio!”
FREI FREDERICO ZILLNER – alemão, franciscano da Igreja da Glória (bairro da Alemanha): É a festa mais familiar e caseira. É inverno e não se pode sair de casa. Todos, praticamente, armam o presépio e a Árvore – um pinheirinho natural. O presépio ocupa lugar de destaque, na sala de estar. É feito com carinho e originalidade. As figuras são confeccionadas pela família (em madeira, palha, louça, papel, barro…), dependendo da região. Na Baviera, por exemplo, (Floresta Negra), prevalece o presépio de madeira. No Sul, é o presépio vivo. Os presépios, na Alemanha, são sempre em estilo tradicional. Só as figuras principais. Os Reis Magos entram nas ruas cantando, distribuindo presentes… Um deles se pinta de negro. Cantam de porta em porta, pedindo contribuição para hospitais e instituições de caridade”.
JOÃO MARIA VANDAMME – belga (Bruxelas): “Na Bélgica, as pessoas que ainda têm ligação cristã, fazem o presépio, ao lado do pinheirinho todo enfeitado. A Ávore é mais popular. O presépio funciona apenas como um enfeite, que dá ao ambiente um clima mais familiar e caloroso, no Natal. Lá não tem Reis Magos nem Papai Noel. O dia da troca de presentes é o 1º. Do ano. Pais, filhos, padrinhos, e afilhados escrevem-se, mutuamente, cartas de votos de Ano Novo. Essas cartas são lidas , solenemente, com a família reunida. Em troca, os presentes. Até as crianças de cinco anos leem as suas cartas. As professoras ensinam direitinho, no colégio, e elas decoram, para “ler” no momento.
Para o entrevistado, todas essas manifestações “não têm cunho religioso, mas um forte objetivo de exploração comercial”. Ei-lo que acrescenta: “As festividades natalinas deveriam primar mais pela lembrança do grande revolucionário que foi Jesus Cristo”. E lembra o teólogo alemão METZ (João Batista Metz) que diz: “A lembrança do Nascimento, Vida e Morte de Cristo deve ser uma lembrança perigosa, dentro da situação de dominação e exploração do povo que estamos assistindo, sentindo e participando – seja como autor ou como vítima”. Finalizando, aponta o exemplo da Igreja do bairro de Fátima: “Uma casinha de palha, com uma rede suja e placas sugestivas, lá fora, falando sobre a expulsão de pessoas de suas casas, identificando a problemática da falta de moradia, nas periferias de São Luís, com a situação de Jesus, Maria e José, em Belém. É o presépio colocado dentro da realidade de hoje, numa mensagem de libertação”.
EDMUNDO POULIOT – canadense (entrevistado no palácio episcopal – arcebispado de São Luís): Devido à propaganda americana, o povo do Canadá é mais voltado para a Ávore. Agora, nas igrejas, é o presépio. Todavia, o presépio não está acabando. Está apenas se inovando, mudando o estilo”.
E para finalizar, a palavra de um europeu (erradicado no Brasil há mais de quarenta anos, residente aqui na capital maranhense, casado com maranhense, pai de filhos maranhenses, portanto já apto a ser considerado um ítalo/brasieiro). Trata-se do italiano Mário Cella (ex-padre, professor aposentado da UFMA, hoje empresário, proprietário da MAGIORASCA, que fala do seu presépio familiar – armado anualmente em sua residência, no São Francisco/Renascença, sempre envolvendo, no tema tradicional, a temática do momento, integrando a cena do Natal à realidade atual. Sem manifestações folclóricas, mas com um objetivo artístico e uma mensagem de conscientização. Ele mesmo explica:
“A cada ano, meu presépio tem uma mensagem, um objetivo. Ano passado, por exemplo (1977) eu o fiz dentro de um globo, querendo representar, através do Nascimento de Jesus, o nascimento de todo homem no mundo. Este ano (1978), foi sobre uma manjedoura espaçosa, imaginando o Salvador que, através da Encarnação, torna-se alimento para a humanidade. Por entre a cena tradicional, ressalta o depoente, sobressaem-se recortes de jornais e manchetes dos mais variados acontecimentos do mundo e do Maranhão, inclusive publicidades de bebidas e guloseimas. A intenção, também, é sugerir os contrastes, a alienação imposta pela sociedade de consumo”.
O professor Mário Cella acrescenta mais que integrou, na decoração do referido presépio, uma estrela “daquelas que pisca, pisca”. E que seu filho, a quem é dedicado o presépio, e que o ajuda na confecção do mesmo, inquiriu-lhe sobre a novidade –“pra que uma estrela de luxo no nascimento de um menino pobre?” – pergunta que surpreendeu a todos, pela inteligência e perspicácia com que foi formulada, pela profundidade que encerra, levando-se em conta os cinco aninhos do garoto. Como pai, Mário Cella tentou explicar, argumentando que fora uma estrela parecida com aquela que que guiara os Reis Magos a Belém. Tentou mostrar, ainda, em linguagem acessível a uma criança de cinco anos, que a vida é cheia de contrastes, com luxo e pobreza entrechocando-se no mundo…
O presépio de Mário Cella constitui o deleite máximo para o seu filho que, mesmo criança, na mais tenra idade, demonstra compreender, perfeitamente, a mensagem que nele se encerra. E a frase que se segue é de grande significado e importância no folclore familiar mariocellano. Proferida pelo menino, três dias antes de finalizar-se a tarefa de armação e ornamentação do presépio, encheu de admiração os presentes, na ocasião. Ei-la: “Papai, eu serei plenamente feliz quando tu fizeres o presépio”. (a frase foi copiada no caderno escolar do garoto – esperamos que esta matéria aqui publicada, venha fixa-la, perpetuá-la n tempo).
REFERÊNCIAS
BRUN, Rosine. On entend partout le carillon. (trad. Dinacy Corrêa) In: France Information, nº. 63, 1978.
CORREA, Dinacy Mendonça. Os Presépios – projeto/relatório de pesquisa-Bolsa de Trabalho-Arte. MEC/FUNARTE/UFMA, 1978-09 (inédito)
CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia do Folclore Brasileiro. São Paul: Martins Editora, 1944.
__________________________. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: INL 1954 (1º. ed.) 1972 (3ª. ed.).
EMILIA, Aldo Réggio. Francesco um educatore per tutti le ere. 1976.
SOUSA BARROS, Arte, Folclore e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paralelo/MEC, 1971.
[1] – quando universitária, bolsista de Iniciação Científica (Bolsa de Trabalho-Arte-Mec-UFMA)
[2] – Enciclopédia Barsa – verbete alusivo.
[3] – informações colhidas na Enciclopédia Barsa
[4] – trad. De Frei Oswaldo do Convento do Carmo (a pedido). São Luís-Ma
[5] – Vida de São Francisco de Assis, 1978.
[6] – In: Cascudo, 1972, verbete alusivo.
[7] – Belo Horizonte: Sion, [s/d], 110 p.